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Quem é você na fila do pão? – Final

segunda parte da crônica - diário de uma pandemia


A fila está menor. Ontem – me disse a atendente – Foi a Rosa quem partiu, assim de repente.

Assim, ela se foi, vítima de um processo furioso de poucos dias. Um dia botão de rosa e no outro, mais um número para as estatísticas.

Agora quem ocupa o lugar a minha frente é a Ana Alice. A respeitável diretora de colégio, viúva, há tempo demais e dona de uma exuberância que sempre afetou de forma avassaladora o meu parco equilíbrio. É o meu lado libertino e sátiro que imagina as safadezas que podíamos praticar, eu e essa honorável senhora. Para que tanta castidade e respeito se vivemos os últimos dias, antes da erupção do Vesúvio? Penso em arriscar essa “cafajestagem”, mas a minha face mais realista, me faz refletir que não é o caso. Ana Alice jamais se deixará levar, ainda que vivendo na urgência e no desespero de uma situação apocalíptica e por mais que na eminência de um desastre, ela será e seguirá firme na sua crença. É uma mulher que acredita no amor. E o amor, ao exemplo dela, também preserva suas regras e condições, sendo que um dos seus preceitos básicos é que sem a composição química correta, não tem romance. Admito o desastre; não temos empatia, nossa fórmula é fraca. Leio claramente isso, nesta mulher bela e fria como uma montanha de mármore, guardiã da fronteira que divide nossos mundos díspares, tal e qual o estreito de Gibraltar, não emite sinal, senha, farol, piscar de olhos, balançar dos cabelos, lábios umedecidos ou qualquer outra representação de linguagem corporal. Assim, enfiei meus sonhos junto com os pães no pacote e voltei a minha cela.

Dia 92

– Surtei. Fui a praia na intenção de caminhar do canal seis ao emissário submarino. Ali, na altura do canal três, dois patrulheiros da guarda municipal me surpreenderam; vieram correndo, vindos do calçadão, no intento de deter-me, prender, multar, afogar… Corri. Corri como um campeão queniano. Foi um auto indício de que me encontro em admirável forma física; porque deixei os guardas comendo areia, fugi pela esquina do Hotel Atlântico e chegando à Praça Independência, usei um Uber para retornar a prisão domiciliar.

Cheguei eufórico. Nada como uma pequena aventura para revitalizar o sujeito, sacudir sua sopa de hormônios e aumentar sua melhor-estima. Eu me sentia revigorado como o adolescente que pulou os muros da escola para vadiar com os amigos. Seguro o elevador para alguém que grita, querendo aproveitar a viagem, é Ana Alice. Ela aperta o seu andar e coloca-se protegida junto a uma das paredes.

Quando ela entrou, limitei-me a uma reverência de cabeça e a ignorei. Tinha esquecido como isto sempre dá certo – ao ser ignorada, ela me notou… Pousou sobre mim os grandes olhos verdes e ainda que fosse de forma crítica, representava um plot twist muito significativo que culminou em…

— Mas o senhor, ehn, seo… – Disse num tom de professora rígida.

Castradora, pensei, olhando dentro daqueles olhos e me imaginando agarrado ou preso entre aquelas pernas de ébano.

 — Qual o problema?

— Todo suado…

— Estava correndo!

— Meu andar… – Ela anuncia quando a porta se abre no sexto.

— Um café?

— Não entendi…

— Nunca me convidou para um café, uma água, um uísque.

— Por que será? – Diz e some no corredor.

Dia 106

– Resolvi fazer uma live. O assunto seria qualquer coisa. Declamar uns poemas, ensinar a receita da torta de jiló, cantar uma canção dos Monkees, recitar os sermões do Padre Antonio Vieira ou o pensamento vivo de Raul Seixas… Decidi por fazer um talk show com minhas únicas companhias dos últimos meses: a lagartixa Gretchen e a Barata Beauvoir que, aliás, não compareceu, creio que por incompatibilidade com a senhorita Gretchen.

Na fila, a lacuna da vez era o Bosco. Morto também pelo terrível vírus. Diógenes Bosco foi um ator que quase chegou aos píncaros da fama, desgraçadamente, por conta de más escolhas, (as escolhas são fundamentais), retornou looser à Santos para mendigar um cargo na Secretaria de Cultura. Agora pensem na tristeza do espírito desse homem, ser enterrado sem um pomposo velório, onde, decerto, compareceria a nata da dramaturgia brasileira e haveria discursos de sumidades como Zé Celso, Marco Antonio Rodrigues, Carlos Meceni e outros grandes com quem trabalhou no teatro. Nada. Não teve velório, audiência, somente o namorado pode estar mais próximo na hora do adeus.

Quero rir da desgraça alheia, mas sinto um vazio, uma tristeza absurda, tédio, loucura… Penso se uma queda do oitavo andar é garantia de morte ou se corro o risco de me quebrar e ficar sequelado e inútil. Talvez, vedar portas e janelas e abrir o gás seja mais eficaz. Tenho segurança da missão cumprida. Filhos criados e ausentes como manda o protocolo. Nenhum amor para chorar por mim. Sem convite para uma suruba ou convocação para a equipe que tem um plano de salvar o mundo. Não farei falta.

A minha frente está uma moça de jeans rasgados. Ligada ao celular por fones de ouvido, ela se balança motivada por alguma canção que não devo conhecer. Deve ser nova aqui no bairro; depois está o Major, falando alto com o dono da padaria e dois enfermeiros do SAMU que deviam estar entrando ou saindo de mais um plantão. Quem será o próximo – eu penso. Serei eu? Absorvido nesses pensamentos de tristeza, medo e melancolia, nem me atenho ao andar da fila; quem chega, quem sai. Na minha vez, peço três carás e uma broa de milho. Me viro para retornar ao apartamento-jaula e dou de cara com ela… Percebo logo que cortou a vasta cabeleira crespa, deixando os cabelos rentes, uma ousadia que em outra mulher poderia dar errado, mas, que nela teve o condão de torná-la mais linda ainda. Ela sorri. Meu Deus! Ela sorri? Sim, ela sorri!

— O senhor pode esperar-me?

Não respondo, estou encantado, bêbado daquele sorriso. É óbvio que espero. No caminho para o nosso prédio, ela diz:

— O senhor aceita tomar café comigo?

Dia 133

– Vencemos a doença, o mal. A vida recomeça sua rotina natural, com as adaptações e cuidados que o momento ainda exige. Marcamos de nos casarmos no mar, durante a volta da Ilha de Santo Amaro, numa cerimônia realizada por um monge canoista, budista que pertence a um grupo que ela frequenta de remadores de canoa havaiana.

Eu e Ana Alice, dois sessentões, sobrevivemos a pandemia e acredito que, termos juntado as escovas, roupa de cama e banho, nossas solidões, lugares à mesa e dividido a conta da padaria, foi primordial para que a gente, principalmente eu, não sucumbisse ao desatino.

Os dias estão repletos de novos significados e o brilho do sol, cobrindo as nuvens de fogo, num fim de tarde se tornou mais precioso que todo o ouro do mundo.


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Comentários

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21 de Out 2024 - 03h16

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11 de Jun 2023 - 03h21

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Julimar Gomes

08 de Mar 2021 - 20h04

Adorei como a fila do pão andou. 👏👏👏☕🍞💕👏👏👏

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